Não é nova a
acção do Governo para tomar a OCDE por fiadora das suas políticas.
O ciclo das
loas à flexibilização curricular e ao perfil do aluno do século XXI, iniciado
sob os auspícios de uma apresentadora televisiva e de um treinador de futebol,
teve a festa de encerramento no passado dia 9. O animador convidado foi, agora,
Andreas Schleicher. Profetizando como convinha aos organizadores, o homem
previu, implicitamente, o fim dos exames do 12.º ano, tal como hoje são
conhecidos. Atrevido, disse que o novo modelo da flexibilidade curricular é a
forma como os professores gostariam de dar as suas aulas. Vidente, falou de uma
tensão existente nas nossas salas de aula.
Que Tiago
Brandão e João Costa lhe tenham dado procuração para dizer o que disse, não
duvido. Mas um pouco de recato para não anunciar tensão dentro de salas em que
não entrou e não falar por professores que não ouviu, era exigível pela tensão,
essa sim bem exposta publicamente, entre a sua condição, permanente, de
director para a Educação da OCDE e o seu papel, temporário, de animador de uma
romaria de directores aderentes e investigadores recorrentes.
Na
celebração foram exibidos despojos do desvario desta desconstrução curricular:
num agrupamento modelo, os alunos do 1.º ano juntaram-se aos colegas do 10.º
para recolher e analisar rótulos; os do básico estão empenhados em descobrir
porque sobem os balões de S. João e porque foram proibidos este ano. E enquanto
um director diligente incensava a audiência com a “desarrumação das salas de
aula” do seu agrupamento, promissão certa de futuro inovador, uma colega mais
excitada leu, do seu caderninho de notas, afirmações dos professores mais
entusiasmados: “há uma apropriação das aprendizagens essenciais pelos alunos”;
“a aprendizagem é mais significativa”. Admiráveis resultados!
Claro que o
sacerdote e os fiéis desta liturgia cor-de-rosa, recuperadora imprudente dos
nossos idos anos 90, manifestaram no fim, em uníssono, profunda preocupação com
os exames. Não será difícil compreender porquê. Mais difícil é assistir à
participação da OCDE num ataque concertado ao papel dos exames na relativização
dos critérios classificativos das escolas, ainda que sob dissimulado pretexto
de discutir o acesso ao ensino superior.
Só ingénuos
não divisaram a encomenda do Governo, subjacente às banalidades proferidas por
Andreas Schleicher, repetindo os mantras do perfil e da flexibilidade, de João
Costa. Só que falam os dois de inovação e de século XXI desenterrando
metodologias descritas por Kilpatrick (para citar um entre outros) nada mais
nada menos que em... 1918. Leu bem, caro leitor, 1918. E se quiser confirmar
que não deliro e encontrar descritas considerações pedagógicas sobre a
transversalidade disciplinar em detrimento das disciplinas isoladas, sobre as
virtudes do trabalho colaborativo e de projecto, sobre as vantagens do ensino
centrado no aluno e não no currículo a ser ensinado (tudo paradigmas usados por
Andreas Schleicher como modernos, numa entrevista que concedeu ao Observador) e
ainda sobre o ensino assente na experiência e nos problemas diários (os rótulos
e os balõezinhos de S. João acima referidos), leia o artigo The Project Method.
The Use of the Purposeful Act in the Educative Process, publicado por
Kilpatrick, em 12 de Outubro de 1918 (Teachers College Bulletin, 10th. Series, nº
3. New York: Teachers College, Columbia University).
Enquanto o
Governo se apresta a passar para a opinião pública a existência de um apoio que
lhe permita generalizar o desastre da chamada flexibilidade curricular e das
denominadas aprendizagens essenciais, continuam vigentes as metas curriculares
de Nuno Crato, num alarde de hipocrisia política e incoerência discursiva, que
não mereceu, como convinha, nenhuma referência na análise da OCDE. Veja-se a
este propósito o artigo publicado neste jornal em 16 do corrente, sob a
colorida epígrafe “Educação para um mundo melhor: um debate em curso a uma
escala global”. É um repositório de vacuidades e afirmações futuristas,
redigidas no mais refinado “eduquês”, assinado, em co-autoria com outros, pelo
secretário de Estado João Costa, mas na condição de (que havia de ser?)...
consultor do projecto da OCDE Future of Education and Skills 2030.
Não é nova a
acção do Governo para tomar a OCDE por fiadora das suas políticas, como não é
de agora o meu repúdio pela promiscuidade, que se repete, entre governantes e
uma organização que defende e depende de interesses económicos, que não
educacionais, e se presta a favorecer e legitimar políticas que acabam impostas
aos actores nacionais. Com efeito, já em Fevereiro de 2009, um grupo de peritos
de relevantes currículos, da OCDE, veio a Lisboa validar as políticas
educativas do PS. Principescamente pagos, produziram um relatório cujas fontes
documentais eram todas do Ministério da Educação. Só falaram com quadros do
Ministério da Educação ou apoiantes do Governo. Havendo milhares de páginas
publicadas na altura, de oposição às políticas de Sócrates, nem uma só mereceu
a atenção dos ilustres peritos. Nem mesmo textos dissonantes, com origem na
Assembleia da República, no Conselho Nacional da Educação, em associações
científicas ou profissionais lograram ser considerados. Se os protagonistas e a
cultura não mudaram, porque mudariam as práticas?
A montante
deste episódio está mais outro relatório preliminar da OCDE, que recomenda o alargamento
do regime que torna as universidades e os politécnicos fundações públicas de
direito privado e dá aos politécnicos a faculdade de conferirem doutoramentos.
A retomada do modelo fundacional para gerir as instituições de ensino superior
é um salto sobre a realidade da última década, bem demonstrativa de que o
privado olha o público para lhe sacar dinheiro e não para, financiando-o,
cumprir alguma parte das suas obrigações sociais. Sendo factual, só um frete ao
Governo, desresponsabilizando-o das suas obrigações, explica a persistência da
OCDE em esgrimir com a decantada flexibilidade de gestão e a ilusória atracção
do capital privado.
Do mesmo
passo, na senda bolonhesa que comprimiu em três as antigas licenciaturas de
cinco anos, o Conselho de Ministros apressou-se a aprovar um novo tipo de
mestrados, a fazer em anunciadas parcerias com empresas, com metade da duração
actual, e a reduzir os cursos técnicos superiores dos politécnicos que, em vez
de dois anos, passarão a um, para os estudantes que cheguem com experiência
profissional. Eis um oportuno upgrade, em modo “simplex”, da experiência
colhida com o “sucesso” das “Novas Oportunidades”. Tudo inovando, modernizando,
flexibilizando, centrado no aluno, rumo ao século XXI.
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