O ministro dos Negócios Estrangeiros louvou ontem a vitória de Salvador
Sobral no Festival da Eurovisão, num artigo de opinião no PÚBLICO onde cruza a
crítica musical arguta com a subtil análise política. “Não se trata apenas de
celebrar uma vitória nacional”, escreveu Augusto Santos Silva, “mas o modo como
foi conseguida”. É um facto: os irmãos Sobral apresentaram-se com uma canção
que qualquer pessoa com décadas de Eurovisão diria não ter quaisquer hipóteses,
por ser pouco festivaleira – este equívoco torna a vitória de ambos ainda mais
meritória.
Mas se Santos Silva percebeu bem a singularidade musical da canção, não
resistiu depois a transformá-la numa singularidade lusitana, no sentido em que
Salvador Sobral cantou em português, afirmou o seu talento individual e rompeu
com a “lógica comercial, do marketing, da uniformidade e do monolinguismo” que
dominava a Eurovisão. Como de costume, assim que nos apanhamos a vencer não
resistimos a pregar ao mundo. Ora, se é verdade que Salvador Sobral demonstrou,
como era seu desejo, que “a música não é um fogo-de-artifício”, também é
verdade que ele e a sua irmã foram dois magníficos trunfos de marketing nos
últimos meses – por causa da simpatia e espontaneidade de ambos, por dominarem
um apreciável conjunto de línguas, e porque o próprio Salvador é uma personagem
fascinante, que extravasa a dimensão estritamente musical. Sim, é verdade que
ele é um intérprete notável e um justo vencedor, mas a vitória na Eurovisão não
se deve apenas à sua singularidade enquanto intérprete – pelo contrário,
deve-se à construção altamente profissional de um caminho que permitiu que essa
singularidade se manifestasse.
Para citar a filosofia do Benfica: há o Jonas, e há a estrutura que o
sustenta. Sendo ministro deste governo, é pena que Augusto Santos Silva não
tenha tido uma palavra de apreço para a RTP, para Nuno Artur Silva, para
Gonçalo Reis, e, já agora – pequena provocação política –, para Miguel Poiares
Maduro, que em 2013 teve a coragem de desgovernamentalizar a RTP. Essa
desgovernamentalização teve como consequência a promoção de gestores
competentes, que por sua vez puderam convidar para o seu lado pessoas mais
interessadas em fazer boa televisão do que favores ao governo. (Note-se: não
tem a ver com o facto de Poiares Maduro ser do PSD; tem a ver com o facto de
ser independente, como ainda agora se viu na FIFA. Enquanto Miguel Relvas
tutelou a comunicação social a desgraça foi a mesma de sempre.)
Embora eu considere que a RTP tem um custo absurdo para o país, não nego as
mudanças positivas que se têm vindo a verificar. Melhores profissionais têm
melhores ideias, e uma delas foi a renovação do Festival da Canção, com a
contratação de consultores como Nuno Galopim, que é daqueles que sabe não só o
nome da canção do Luxemburgo na Eurovisão de 1984, como quantos pontos teve.
São estas pessoas, apaixonadas pelo seu trabalho, que perceberam que a melhor
forma de renovar o festival seria convencer os melhores compositores
portugueses a participar – e foi desse convite que surgiu Amar pelos Dois.
Aquilo que importa dizer sobre a vitória portuguesa é menos “Salvador Sobral é
único” e mais “trabalhámos com um profissionalismo que não se via há muito e o
investimento compensou”. Os irmãos Sobral criaram uma grande canção, com
certeza. Mas sem as boas ideias de profissionais competentes e independentes na
RTP, não teriam chegado a criar coisa alguma.
Jornalista
Comentário:
Chegada da Troika a Portugal em 2011 |
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