Alberto
Gonçalves - OBSERVADOR
E
nesta dimensão cabe o que calha, de um PM literalmente indescritível a um PR
viciado em palminhas, passando por um parlamento sequestrado por gangues e
presidido pelo molde de onde saem os laparotos
E
a notícia do “Público” sobre os 10 mil milhões em “offshores”? Uma ignomínia
(cito uma pessoa preocupada)? Uma bomba (cito duas pessoas preocupadas)? Ou
apenas a reprodução quase exacta da notícia do “Público” em Abril de 2016,
agora ressuscitada para desviar as atenções da CGD, que pelos vistos não vale a
pena investigar, para as transferências de capitais, que pelos vistos devem ser
investigadas até às últimas consequências?
Em
qualquer das hipóteses, há vantagens. Uma é que, em princípio (em princípio), a
investigação é redundante: as autoridades, incluindo as actuais, sabem por
definição quem acautelou o seu dinheiro em paraísos fiscais para, na medida do
possível, evitar o inferno indígena. Outra vantagem é que, dada a presuntiva
legalidade e a evidente moralidade do exercício, as consequências serão em
princípio (em princípio) nulas, excepto pelo pretexto que o episódio fornece a
gente desprovida de vergonha na cara para inventar um “caso”.
Nem
de propósito, entram em cena a extrema-esquerda, subitamente munida das
interrogações e da indignação que lhe faltaram acerca da CGD, e o dr. Costa. O
dr. Costa, o tipo de espécime que compromete a utilidade dos polígrafos e do
decoro, considera “absolutamente escandaloso que um governo que não hesitou em
acabar com a penhora da casa de morada de família por qualquer dívida tenha
tido a incapacidade de verificar o que aconteceu com 10 mil milhões de euros
que fugiram do país”. Quarenta e oito horas depois, perante a disponibilidade
da “direita” para ajudar ao esclarecimento do “escândalo”, o PS recua e acha
“precipitado” bulir no dito, imprudência que talvez precipitasse revelações
desagradáveis. Uma coisa é a tradicional demagogia, com os rotineiros pozinhos
de corrupção, um travo de mentira e a incompetência da praxe: isto, porém, já
pertence a uma dimensão inexplorada.
E
nesta dimensão cabe o que calha, de um PM literalmente indescritível a um PR
viciado em palminhas, passando por um parlamento sequestrado por gangues e
presidido pelo molde de onde saem os laparotos. Pode-se descer mais? Pode, se
adicionarmos ao caldo a maioria dos “media”, hoje empenhada em ignorar os
factos que prejudicam a “corte” e em difundir os delírios que lhe amparam o
descaramento. Entre parêntesis, aproveito para avisar os editorialistas que
começaram por se atirar prestimosos aos “offshores”: aparentemente, a história
é para esquecer.
Contas
feitas, fica a impressão esquisita de que se chegou a um ponto sem retorno, de
que já se está por tudo, e de que nada – incluindo recorrer a truques infantis
para ocultar a pândega da “Caixa”, enviar o evangélico Louçã para o Banco de
Portugal, depositar em juiz amigo o futuro do eng. Sócrates ou prometer 700
euros mensais a “jovens” (até aos 30 anos, que a juventude é um estado de
espírito) que não estudam e não trabalham – é demasiado grotesco. Enquanto
isso, sempre que não se encontra na televisão a louvar os respectivos donos, o
país oficioso dedica-se a declarar intoleráveis o sr. Trump e o livro de Cavaco
Silva.
Nem
todos os regimes caem mediante revoluções abruptas. Às vezes terminam assim, com
o sumiço gradual e festivo do que restava da legitimidade e da razão. Um dia
acorda-se e a democracia que bem ou mal reconhecíamos foi-se, para surpresa de
muitos e deleite de alguns. A merecida desilusão dos primeiros não nos
compensará pela impunidade dos segundos. Entretanto é Carnaval, mas ninguém
nota a diferença.
Notas
de rodapé:
O
assunto é grave. A cada sete séculos, há mil e quatrocentas condenações por
discriminação racial em Portugal. Ou, citando os números de uma Comissão para a
Igualdade, 20 condenações entre 2005 e 2015. Ou duas por ano. Consternado pela
epidemia, o Conselho de Ministros alterou a lei alusiva e enfiou-lhe os
conceitos de “multidiscriminação” (exemplo fornecido: alguém é discriminado por
ser mulher e negra) e de “discriminação por associação” (exemplo fornecido: um
jovem mal atendido num serviço público por andar com dois ciganos). Além disso,
o governo sugere multas para actos racistas ou xenófobos: até 4210 euros, se o
crime for cometido por indivíduos; até 8420, se cometido por pessoas
colectivas. A tentativa de discriminar pagará metade.
À
primeira vista, o propósito é louvável. À segunda, levanta inúmeras questões.
Como se percebe que a senhora se viu discriminada por causa do género e da
etnia em simultâneo? Os agressores mandaram-na para uma cozinha africana?
Presumir que é uma senhora, e não um hipotético transsexual ou similar, não é
em si discriminatório? E de que modo se apura a culpa se quem discrimina orar
voltado para Meca? E quanto ao tal jovem, é garantido que foi enxovalhado
graças à companhia de ciganos, ou terão sido os ciganos vítimas da companhia do
jovem? Há que presumir que o jovem é branco e heterossexual? E se acumular com
o estatuto de simpatizante do PSD? E se frequentar a missa ao domingo? E se o antipático
funcionário público for esquimó, gay, animista e manco? Pode-se considerar
antipático um gay? E se o serviço público acabar – o diabo seja cego, surdo e
mudo – privatizado?
Ainda
vamos em dois exemplos e as dúvidas não têm fim. Se metermos as multas ao
barulho, o caos aumenta exponencialmente. O que define a tentativa de
discriminar (ou a meia multa), resmungar impropérios em voz baixa? Trocar os
sapos na entrada das lojas por outros batráquios? E a xenofobia, só se aplica a
originários de países exóticos? Continuaremos livres de insultar americanos,
israelitas, espanhóis e alemães, independentemente da raça? Uma agremiação de
“skinheads” é “indivíduo” ou “pessoa colectiva”? Multa-se os sujeitos que
espancam gays na festa do “Avante!” ou o PCP em peso? É admissível castigar
comunistas? E socialistas ociosos, pagos pelo contribuinte para pensar o vazio?
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