1. Saiu do prelo o primeiro volume
(Evangelhos) da tradução da Bíblia feita por Frederico Lourenço. Confesso que o
recebi com entusiasmo, mas também desconfiança perante a ambígua publicidade
precursora: ao contrário do que insinua, não é a primeira vez que a Bíblia é
traduzida das línguas originais para português. A novidade da obra está em
traduzir a versão grega do Antigo Testamento (chamada “LXX”), elaborada a
partir do texto hebraico, no séc. III a.C. em Alexandria, destinada aos judeus
da diáspora, que já só falavam e compreendiam grego — ou seja, é uma tradução
para português da, por sua vez, tradução do hebraico para o grego.
2. O autor apresenta o seu trabalho como
uma tradução que «privilegia, sem a interferência de pressupostos religiosos, a
materialidade histórico-linguística do texto». De facto, nota-se uma acentuada
e muito positiva preocupação linguística, mas que desencarna as palavras da sua
alma semântica e as desaloja do seu contexto e finalidade. Parece esquecer que
todos os livros bíblicos nasceram num contexto crente e têm uma finalidade
religiosa e que, embora os termos sejam gregos, os conceitos são
veterotestamentários, hebraicos e semitas. Além disso, começa por afirmar que
«as notas não pretendem interpretar o texto na sua extraordinária riqueza
teológica (nem eu teria competência para tal)», mas acaba por fazer
considerações teológicas e recorrer frequentemente ao trabalho de biblistas
para fundamentar as suas opiniões. Em que ficamos?
3. Lourenço faz pairar ao longo da
introdução (e das entrevistas que deu) a suspeição sobre todas as outras
traduções portuguesas; apenas a sua levará o leitor a encontrar-se com a
verdade «histórico-linguística do texto». Qual verdade? A de Lourenço? A Bíblia
não tem uma tradução, mas traduções. Todas elas com qualidades e fragilidades,
que se enriquecem na medida em que não são mónadas mas textos dialogantes, que
iluminam o significado sempre inesgotável de determinada passagem ou livro
bíblico.
4. Uma outra característica reveste esta
obra e é, concomitantemente, a sua riqueza e fraqueza: resulta do trabalho de
um homem só. Riqueza, porque lhe dá harmonização de critérios; fraqueza, porque
brota de um texto não dialogado. Há quatro anos que trabalho na tradução da
Bíblia para a Conferência Episcopal, agora na moderação da equipa do Novo
Testamento. Na revisão das traduções solicitadas a diferentes biblistas,
acontece-nos discorrer demoradamente sobre opções de tradução e, não havendo
consenso, preferimos deixá-las em suspenso e consultar outros exegetas.
Trata-se de uma tradução dialogada, fruto de reflexão sobre o sentido
linguístico, mas também semântico e simbólico de palavras e expressões,
enriquecida pelos diferentes ângulos e contributos. Na de Lourenço encontramos
apenas a sua perspetiva e a evocação dos biblistas surge somente para
fundamentar os seus pressupostos.
Em conclusão: Lourenço aporta-nos um
contributo muito positivo, na medida em que nos proporciona não «a» tradução,
mas «mais uma» tradução de Bíblia, com importantes anotações linguísticas que
nos ajudam, a par de outros bons e variados estudos, a tirar do tesouro da
Sagrada Escritura «coisas velhas e coisas novas» (Mt 13,52).
Padre e professor do Instituto Superior de
Teologia de Évora
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