quarta-feira, 5 de março de 2014

A Primeira Rússia




A primeira Rússia, sob o nome de “Rus”, foi constituída pelo Estado de Kiev entre 860 e o século XII. E nesse período conheceu uma era gloriosa, mas sob o domínio dos mongóis da “Horda de Ouro”. Em 1380 dá-se um episódio decisivo na história daquela que mais tarde se passou a designar  Moscovía: a batalha de Kulíkovo, chefiada pelo grande principe Dmitri Ivánovich de Moscovo. À frente de uma coligação de forças russas, derrota o Kan Mamay.
Os tártaros (como eram conhecidos os mongóis) são assim, praticamente esmagados. Esta vitória cria nos russos a ideia de que Moscovo estava destinada a conquistar a independência russa e a unificar os seus territórios. E assim foi. Ivan III de Moscovo deixou de lhes pagar o tributo em 1480. E depois da queda de Bizâncio, a capital do mundo ortodoxo, em 1453 a favor dos Otomanos, os russos convenceram-se de que Moscovo passaria a ser a terceira Roma, a verdadeira capital ortodoxa. Não foi por acaso que os seus príncipes passaram a usar o epíteto de Czar (César em russo). Em 1478, Ivan III conquista Novgorod e em 1510 Kiev. Ivan, O Terrível,  nas suas conquistas de 1552 e 1556 abre as portas para a Sibéria e para o Mar Negro. A Oeste, a Polónia e a Lituania (unidas desde 1569), refrearam as pretensões moscovitas até ao fim da Guerra dos Trinta Anos, no século XVII. Estava assim formada Moscovia, como era conhecida a Rússia pelo Ocidente a partir do século XV, posteriormente a Grande Rússia
Pedro, o Grande, e Catarina II, fizeram mais tarde da Rússia, um poderoso Estado (Império), através da contenda com o monarca da Suécia. E nesta em que os russos foram vitoriosos, a Ucrânia “apostou no cavalo errado” quando Iván Mazepa, o governador dos cossacos ucranianos, prestou colaboração a Carlos XII da Suécia. Esta vitória de Pedro em Poltava (Ucrânia) no ano de 1709, foi o segundo momento decisivo na história da Rússia, pois pode considerar-se como a data de fundação do Império russo.
A história recente da Rússia é, apesar de tudo,  menos elegante. No inicio do século XX, surgem as atribulações que muitos conhecemos. DostoiévsKi, em Demónios, alerta para as origens do terrorismo, que culmina com a revolução de 1917 e com os anos que se lhe seguem. Á cabeça destacam-se dois nomes singulares: Lenine e Estaline. Dos crimes contra a Humanidade (tão ou mais graves do que aqueles cometidos por outro facínora - Hitler) orientados por estes dois patifes, já neste local fizemos algumas referências. Existem milhões de páginas que os denunciam (apesar de durante décadas serem defendidos por Sartre, Brecht, entre outros). Na primeira linha podemos citar  Soljenitsine (O Império de Gulag)   e Sakarov. E não chegavam dezenas de milhares de livros para os descrever. Mas um deles, dos mais chocantes, foi a fome genocidária preparada por Estaline na Ucrânia em 1932. E não foi por acaso. Os ucranianos respeitavam a propriedade privada, iam assim, contra a ortodoxia leninista/estalinista.
Vassili Grossman escreveu duas obras enormes de denúncia: Vida e Destino (a sua obra prima, para muitos) e Tudo Passa, a nossa preferida. Ambas publicadas recentemente em português na Dom Quixote, com tradução do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra. A primeira valeu-lhe o ostracismo dos seus compatriotas por ter comparado (e bem) o totalitarismo soviético ao totalitarismo da Alemanha Nazi. O segundo foi apenas publicado 20 anos após a morte do autor, não chegando a escrever a história do povo Arménio (o primeiro genocídio do século XX) como havia pretendido já no final da vida. Em Tudo Passa, traça-nos um retrato nu e cru da Revolução Soviética e dos seus primeiros caudilhos: Lenine e Estaline.
Do sistema diz coisas como isto: “Na sua firmeza de princípios [referindo-se ao bolchevique Lev Mékler] revolucionários, meteu na prisão o seu próprio pai e fez depoimentos contra ele na Tcheka da provincia” (p.173). De Lenine ressalta da sua personalidade comportamentos execráveis: “A intolerância de Lénin (…), o despreso pela liberdade, a crueldade em relação aos discordantes e a capacidade de, sem hesitar, varrer da face da terra não só fortalezas mas também distritos, regiões, províncias que contestassem a sua razão ortodoxa ...(p.188). E  de Estaline atiça-nos o seu instinto sanguinário: “ O carácter de Stálin juntou todos os traços da Rússia esclavagista, impiedosa em relação às pessoas” (p. 211). E acrescenta:” Stálin não tinha medo de quase ninguém, mas teve medo da liberdade ...” (p. 215). Da liberdade enquanto fundamento da criação humana como nos diz o personagem de Tudo Passa: “ O que se mantém, se desenvolve e vive é a verdadeira força – a liberdade. Viver significa ser livre. Nem tudo o que é real será razoável. Tudo o que é desumano é também absurdo e inútil” (p. 222).
Vladimir Putini, nasceu na antiga União Soviética, com uma larga tradição de terror e crimes hediondos. E como todos os leninistas e estalinistas não entendeu as palavras “proféticas” dos pensadores russos do século XIX – Dostoiévski, Belínski, Gógol ou Tchaadáev. Não falavam da glória militar russa, falavam, como nos diz Grossman,  da glória do coração russo, da fé russa e do seu exemplo. Ou seja, da alma russa. Desenvolver acções bélicas como a demonstrada na Crimeia, tipicas do homem de Oitocentos é não perceber isto. Foi assim a Rússia dos boiardos, a de Ivan, o Terrivel, a de Pedro, o Grande, a de Catarina II, atingindo o seu pleno triunfo na época de Estaline. “O principio milenar de crescimento da ilustração, da ciência e da potência industrial russas por meio do crescimento da não liberdade humana ...”(p. 213).
O sr. Putini, contudo, já amadureceu com as reformas de Gorbatchev, por essa razão muitos ocidentais lhe não entendem a atitude. Ainda por cima quando há cerca de 10 anos, reconhecendo (e bem) com frontalidade e transparência os crimes praticados nos Gulags, mandou editar uma edição renovada da obra de  Soljenitsine, preparada para as crianças russas!
Os últimos desenvolvimentos na Crimeia apontam para aquilo que se adivinhava. Uma acção bélica daquela natureza não se prepara em tão poucos dias. Há muito que estava planeada (talvez há anos, depois da independência da Ucrânia), com um calculismo absurdo e desumano.
Com a acção na Crimeia, Putini demonstra que a Rússia tem poder bélico para avançar sobre o território ucrâniano, sobretudo no Leste. A Crimeia que na verdade já era dominada pelos russos, após o tratado de 1994 assinado por russos e americanos (onde a Ucrânia abdicou das armas nucleares a troco da sua independência), foi o pretexto para um problema mais profundo: Kiev, a Primeira Rússia – a “Rus”.
Como Kiev, momentaneamente é objectivo difícil de alcançar (sem a destruir), o sr. Putin vai tentar dividir o território para facilmente ocupar o Leste do país. Aliás, onde já lá tem gente das forças especiais.
Se chegar a acordo com o mundo livre, pelo menos a Crimeia já ninguém lha tira durante largos anos.
O que se espera do mundo livre, é que não abdique da liberdade! Como o tem demonstrado desde que o conflito rebentou.

Armando Palavras


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